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domingo, 14 de outubro de 2012

No final, Tufão mata Carminha

Por que sentimos horror e fascínio em descobrir o desfecho de uma história



LUÍS ANTÔNIO GIRON

Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV (Foto: ÉPOCA)

Atenção, spoiler! Contei de cara o último capítulo da novela Avenida Brasil para provocar horror, piedade e espanto dos poucos incautos que chegaram até este ponto desta crônica. Na realidade, eis meu anticlímax: nada sei sobre como João Emanuel Carneiro irá terminar sua excelente novela. Mesmo assim, imaginei que, se a vítima, o enganado Tufão, assassinasse a vilã Carminha, sua mulher, o estratagema dramático provocaria uma enorme interjeição nos 50 milhões de espectadores que acompanham as reviravoltas de segunda a sábado.


Nunca vi novela com tantas viradas e episódios improváveis. Sei de muita gente torce para que ela jamais termine, embora, ao mesmo tempo, anseie por saber o seu final antecipadamente. Como há dezenas de revistas devotadas a revelar o que acontece nos capítulos seguintes das telenovelas de sucesso, creio que exista um grande número de estraga-prazeres, uma minoria de espíritos de porco que se vale das informações privilegiadas que colhe nessas publicações (muitas vezes tão falsas como a que figura no título acima) para se destacar em um papo de bar ou em família. 

Faço parte desta raça maldita de reveladores de trama. Até porque não alimento nenhum tabu em relação a conhecer o desenlace de qualquer coisa. Além disso, sou um consumidor compulsivo de histórias. Quero satisfazer minha curiosidade imediatamente. Quando leio um livro, começo pelo primeiro capítulo e já pulo para o derradeiro. Só então consigo me deliciar com o miolo. Já pedi a inúmeras ciganas que adivinhassem o epílogo de minha existência terrena. Elas responderam que, no final, eu irei morrer. E não há final menos inesperado que morrer na própria vida. Talvez por isso mesmo, imbuídas de tamanha certeza, as pessoas procurem na ficção o consolo de um final qualquer espantoso que as arranque por alguns instantes do tédio profundo do cotidiano. 
crescente que impõe a aversão pelo conhecimento do epílogo de uma trama antes da hora. Como todo tabu, a aversão mascara o fascínio de saber. É compreensível. O excesso de informação e a oferta de todo tipo de enredo tornam os desenlaces cada vez mais raros. É provável que o final de um livro, de uma novela, de uma série e de um filme vaze a qualquer momento. A saturação do uso das várias modalidades de entrecho tende a tornar todos os finais possíveis passíveis de ser descobertos. Assim, o público ficou mais cético e esperto. Daí a moda dos finais impossíveis e inconsistentes. Só eles tiram os espectadores e leitores do sério. O autor que hoje consegue guardar o segredo até o último instante se torna uma espécie de herói da própria história.
Sabedor dessa verdade, o escritor João Guimarães Rosa pedia que cada leitor deGrande sertão: veredas não revelasse o final do romance, para não estragar a surpresa. Poucos leitores o obedeceram. Hoje não conheço um único estudante que não saiba o destino de Riobaldo e Diadorim. Só não conto aqui o que todo mundo sabe, em respeito ao autor.
Mas será que saber o final provoca um prejuízo na fruição de uma determinada história? Eu acho que não. Mesmo assim, vou recorrer ao mestre dos mestres nessa matéria, o filósofo grego Aristóteles, que escreveu sua Poética entre os nãos 335 a.C. e 323 a.C. A Poética (baseio-me na edição bilíngue grego-inglês da Loeb Classical Library, tradução de Stephen Halliwell) é um tratado que inspira as gerações de escritores e teóricos, até porque seu final foi perdido. Aristóteles tenta fornecer uma explicação ao funcionamento da epopeia, da tragédia e da comédia. A parte da comédia perdeu-se, fato que inspirou outros escritores a imaginarem o que Aristóteles teria pensado sobre o tema. É o caso de Umberto Eco que... não vou contar o final de seu romance O nome da rosa... 
De volta à Poética, Aristóteles define a como a imitação de uma ação completa, íntegra e magnífica. “O todo é aquilo que possui um começo, um meio e um fim”, escreve Aristóteles, e vou tentar manter aqui a sintaxe solta e o vocabulário simples que ele usou. “O começo é algo que não segue obrigatoriamente outra coisa, e que, depois dele, um evento ou processo posteriores naturalmente ocorrem. Um final, por contraste, é aquilo que naturalmente acontece, necessária ou usualmente, depois de um evento precedente, e que não precisa ser seguido por outra coisa. O meio é aquilo que segue tanto o evento precedente como gera consequências posteriores.” Dessa forma, um enredo bem-construído não deve nem começar nem terminar em um ponto arbitrário, e sim seguir os padrões estabelecidos desde o início da história. Assim, segundo as regras aristotélicas da ação unitária, um epílogo resulta de uma lógica interna de eventos estruturada e coerente, mesmo que durante a trama aconteçam transformações, reviravoltas e cenas de reconhecimento. Tudo para manter o sentido de conjunto de determinada tragédia, ou outra modalidade de enredo.
É claro que a lição mimética de Aristóteles foi subvertida ao longo dos séculos, inclusive por autores trágicos como Sêneca, Shakespeare e Nelson Rodrigues, que criaram finais não raro desequilibrados, improváveis e condenáveis do ponto de vista de Aristóteles. Sêneca criou uma máquina de surpresas absurdas a que denominou de “tragédias de vingança”. Shakespeare inventou o drama moderno, mistura de tragédia e comédia. Nelson Rodrigues apostou em finais grotescos e burlescos.
Os romancistas foram os nestres en quebrar o molde. Basta ler Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, ou então A morte de Ivan Ílitch, de Liev Tolstói, cujo título já conta o desfecho da novela. Quem não sabe que Emma Bovary e Anna Karênina morrem no fim? Jorge Amado também revela o final e sintetiza no título todo o enredo de sua novela fantástica A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, de 1962.
Assim, caso você não queira seguir os preceitos de Aristóteles de 24 séculos atrás para se manter equilibrado dentro de uma perfeita ordem estética, não precisa suspender a descrença e muito menos evitar conhecer o final de uma história para desfrutar de um livro, uma peça, uma telenovela ou de um filme. Tanto faz se Tufão matar Carminha ou vice-versa. Afinal, o que importa é a trama enquanto acontece: o miolo.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.)

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