Dina Sfat, Jardel Filho e Juca de Oliveira, personagens principais de "Fogo Sobre Terra" (1974) |
Dentre as novelas de Janete Clair, "Fogo sobre Terra" (1974) foi uma das mais censuradas. Liberada apenas um ano depois de escrita, o folhetim sobre a construção de uma hidrelétrica ia contra os recentes investimentos da ditadura nesse tipo de matriz energética. Itaipu começaria a ser construída em janeiro de 1975 e causaria desapropriações além de desastres ambientais como a destruição do Parque Estadual de Sete Quedas, no oeste do Paraná. Os censores achavam que a trama se tornaria uma "conclamação à revolta", especialmente por conta de seu protagonista, Pedro Azulão (Juca de Oliveira), um líder comunitário que queria evitar que a cidade fictícia de Divineia fosse inundada. A autora havia previsto para o último capítulo a cena da inundação em que o protagonista se deixaria morrer afogado pelas águas da barragem, mas a censura impediu com medo que ele virasse mártir.
"Em ‘Fogo sobre Terra’, a censura queria que a Janete não fizesse a inundação, pois consideravam a cena um estímulo à população para protestar contra a construção de novas represas. Mas não queriam registrar isso, pedindo que a alteração parecesse uma ideia da autora. Como não quiseram assumir a orientação, prosseguimos com a sinopse original", contou o ex-superintendente de produção e programação da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
Pedro Azulão, portanto, acabou não morrendo. Nem a ideia inicial de Janete, que decidiu aplicar o mote à personagem Nara (Neuza Amaral), que se recusa a abandonar a cidade e é tragada pelas águas em sequência que, segundo os produtores, foi emocionante.
Janete também programara uma rebelião popular em Divineia, na qual Azulão sairia como herói. A censura enxergou no episódio uma apologia à guerrilha e obrigou a autora a puni-lo com prisão por seu ato.
"’Fogo sobre Terra’ teve problemas do início ao fim, o que obrigou Janete a reformular a novela algumas vezes (comprometendo a coesão da trama). Mesmo após 12 capítulos inutilizados, a censura foi impiedosa, mas a capacidade criativa de Janete Clair superou as incômodas interferências", conta o autor e doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana pela USP, Mauro Alencar.
Quem dá mais detalhes sobre a perseguição a Pedro Azulão é seu intérprete, Juca de Oliveira, em entrevista exclusiva por e-mail. Leia:
UOL – Seu personagem era uma espécie de líder comunitário que a censura encarou como subversivo. Eles pedem diversas vezes para interferir no comportamento desse personagem. Você lembra exatamente o que teve que mudar ao interpretá-lo?
Juca de Oliveira – Meu personagem era um camponês, líder natural da sua gente, caipira, boiadero de Divineia, cidade fictícia do Mato Grosso. A ditadura da época tinha pavor de que se repetisse aqui a revolução cubana, um movimento a partir do campo, e via fantasmas em todas as cenas. O Pedro Azulão seria, no imaginário deles, um eventual modelo de Fidel a ser seguido pelos camponeses brasileiros. Uma enorme bobagem. Daí a frequente perseguição dos censores ao pobre Pedro. Vivíamos em pânico. Janete Clair se desdobrava pra aprovar cena por cena, argumentando, tentando convencer aquela gente de que Pedro Azulão era só um boiadeiro simplório apaixonado por sua terra e não um guerrilheiro comandado por Guevara. Um dia, em plena gravação, um assessor da Globo que estivera numa tumultuada reunião na censura entrou apavoradíssimo pelo estúdio aos gritos: "Tem que prender o Pedro Azulão! Pedro Azulão não pode continuar solto por aí!". A fantasia se misturava à realidade. Não entendo onde a Janete, o Boni, o Avancini, encontraram forças pra continuar. Nós mesmos, os atores, estávamos permanentemente preparados para a prisão. Muitos adotavam o sábio conselho de Mário Lago: "Nunca deixa de ter no bolso sabonete, pasta e escova de dente, porque por lá a higiene é precaríssima..." Depois de tudo isso dá pra acreditar que ainda hoje tem uma meia dúzia de idiotas clamando pelo controle da liberdade de imprensa?
A novela retratava a construção de uma usina hidrelétrica e a consequente desapropriação de uma pequena cidade. Enquanto isso, era construída a hidrelétrica de Itaipu. Por que os militares viram paralelos com a realidade na novela?
Janete era, além de excepcional escritora, uma ambientalista. Já naquela época, décadas antes de Belo Monte, ela já prenunciava a tragédia das hidrelétricas sobre o homem e o meio ambiente. Não havia nada de político no conflito entre os dois irmãos, mas luta pela preservação ambiental.
Qual era o problema que a censura via na relação entre os personagens Pedro Azulão e Chica Martins [Dina Sfat]?
Chica era uma mulher livre, uma cabocla segura de si e independente. Os militares, além de terríveis reacionários, eram também moralistas e a visão deles sobre a mulher não comportava umaa personagem íntegra como aquela. Pra eles a mulher devia cuidar do tanque e do fogão e só!
Por que a Janete Clair chegou a mandar um documento aos censores reclamando das dificuldades em escrever "Fogo Sobre Terra"? Em que a história original mudou até o final?
Janete foi uma heroína. Brigou, lutou com todas as armas de que dispunha. A censura era tacanha, mas Janete, inteligentíssima, usava também de muita astúcia e quase sempre conseguia dribla-los. E acabava impondo a sua mensagem e a sua ideia absolutamente na íntegra.
O público percebia essas mudanças que ocorriam? Mesmo a novela sendo uma obra aberta, há certas mudanças que tiram o sentido da trama... Rolava muito isso?
Não, a luta contra a censura era uma luta de bastidores. Sabia-se da censura, mas não se conheciam os detalhes.
Os protagonistas das novelas da Janete Clair não eram necessariamente galãs. Eram homens, como dizia meu avô, "da lida", ou seja, que trabalhavam na terra. Pedro Azulão (ao que parece) era um desses. Por que esse perfil do herói mudou?
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- Fonte: televisao.uol
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